sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

" Sinais de Infinito" - Livro a publicar brevemente - Umas linhas - do 22º. capítulo.

(...) E os dias foram passando. E os alimentos escasseando e chegando cada vez com menor regularidade, uma situação que obrigava a jovem a mover-se cada vez menos no reduzido espaço, para poupar as energias que lhe restavam.
Certa noite, numa daquelas em que a vigília era a companhia e a única forma de anular o tempo, foi surpreendida pelo inconfundível troar de canhões e de rebentamentos a alguma distância e pelo ruído de aviões sobrevoando a zona.
Aproximou-se da pequena abertura que a trazia ainda presa à vida, tentando prescrutar qualquer alteração nos ruídos que se iam adensando, numa tentativa de descodificar o que ali estava acontecendo.
E os rebentamentos foram-se aproximando. E o barulhos dos aviões também.
Naquela minúscula e coada luz da manhã que lhe entrava pelo pequeno orifício, que mal deixava entrar o ar, surgiu-lhe o que nunca dantes acontecera: sentiu medo, um medo fagedénico, que aos poucos se transformou em terror: terror de ali poder ficar soterrada no meio daquelas paredes e daquelas enormes pedras, que nem se lhes distinguia a cor, uma predição que inconscientemente a acompanhava em certos e esparsos momentos da noite.
E sem querer sentiu que os lábios se moviam numa precipitada prece, o que há muito não fazia. E por instantes regressou aos tempos da infância. E recordou a mãe profundamente católica. Ao que se dizia, a avó também, o havia sido. E que morrera soterrada no Saint Mary Hospital nos tempos do Blitz da Segunda Guerra Mundial.
Iria acontecer-lhe o mesmo?
E pensou: "Falar de Deus e com Deus faria naquele momento algum sentido? "
" Sim. Ele tinha de a ajudar...
"Ajudá-la? Ela que tantos anos O esquecera? E que não ajudara a avó, uma doce alma praticante?"
" Não aprendera na catequese, que Deus era infinitamente misericordioso?
Então se Ele existia e era misericordioso, era hora de se mostrar.
Estava mais do que nunca a precisar...
E uma voz corrosiva e irónica brotou lá do fundo da alma:
" Aquela que apelidavam de Diva, com medo??!"
" Que duvidava de mistérios, incluindo o de fé?!"
E sentiu vergonha, quase arrependimento.
Afinal a incoerência era humana - foi alguém sussurrando.
E recordara a mãe. Seus conselhos; seus reproches em relação à profissão que abraçara. As pequenas loucuras que praticara...
Depois desbobinara-se-lhe pela mente a visão de uma "parada fandanga", uma legião sombria de seres de rosto triste, resignado, a indicar-lhe que o fim talvez não estivesse longe.
E sentiu os impactos cada vez mais assustadores, talvez de mísseis, rockets ou outras armas que estavam a ser disparadas ali tão perto e a aproximarem-se cada vez mais, tanto que já lhes sentia o cheiro.
E um deles, com uma intensidade brutal projectara-a violentamente para o chão térreo e irregular.

A atmosfera era agora densa, sufocante, irrespirável.
Pó e escuridão fizeram-na soçobrar na penumbra em que ali nos últimos meses sobrevivera. Sentiu o chão rugoso morder-lhe o rosto e as mãos. Tentou apesar de tudo, manter-se calma e analisar a situação. Assim rezavam os manuais distribuídos em zonas de conflito e guerra que ninguém lia, e pôr-se ao corrente da situação.
"Havia derrocadas. Pedras e terras no interior".
Levantou-se lentamente com todo o custo, cuidado e receio de que algum estremecimento pudesse bulir o resto de estrutura, e encaminhou-se para aquele lado onde calculava encontrar-se a saída...
A poeira foi assentando e só então pôde verificar os danos que o brutal impacto causara. Eram imensos. Mas estava viva, um egoísmo que nem ao inconsciente, nem ao subconsciente passara despercebido.
Por instinto e rastejando tentou alcançar a porta.
Para quê? - pensara. Fechada como sempre, e com enorme fecho exterior, uma aldraba ferrugenta que ao sair fazia um ruído desencorajador, nunca seria possível.
Fez uma alquebrada tentativa, com a força que lhe restava e que não era muita. Fez outra e a porta cedeu.
Para seu espanto, a aldraba não havia sido reposta: a porta havia ficado aberta.
Mas não era tempo para reflexões, menos ainda para congeminações. Era preciso sair dali e depressa. Havia vários dias que não comia. Estava depaupurada; sem forças.
Galgou os degraus com dificuldade e divisou a luz do dia, que desapiedade e crua, impunemente lhe feria os olhos.
"Há quanto tempo a não via?!"
E sentiu nas narinas o odor palpitante da vida. E também o da morte trazido nos rebentamentos daquele vento gélido da manhã.
Uns raios tímidos de sol sem fulgor, iam-se libertando da linha do horizonte.
Era mais um dia que nascia no Médio-Oriente.
No céu um helicóptero volteava nas alturas como velho e faminto abutre localizando lá em baixo a sua presa.
Harriet olhou em redor. Tinha de se esconder em qualquer parte.
Não havia muito por onde escolher. Para além de uns penhascos espalhados a esmo, a aridez da terra perdia-se na distância.


A bordo da nave, o major Jerry Haunt vociferou, sobrepondo-se ao ruído infernal das pás e dirigindo-se ao navegador, o tenente McGrover:
- Look!
E de imediato baixou abruptamente o nariz do aparelho para reconhecer o que lá em baixo havia e chamado a sua atenção:
- My God - exclamou atónito - That´s a woman!
E acto contínuo, mesmo reconhecendo a dificuldade que se avizinhava, Haunt fez a perigosa manobra de aproximação entre as rochas que por ali se encontravam conseguindo com alguma dificuldade manter livre dos penhascos a hélice traseira, indo imobilizar o aparelho a poucos metros de distância do local onde vira a rapariga.
O homem saltou da nave imediatamente e veio fugindo ao encontro de Harriet.
- How do you feel?! exclamou exausto e ofegante.
- Very well - respondeu calmamente a rapariga.
Mas o oficial teve dificuldade em entender, pois a jovem mal se detinha de pé. Estava magra, suja e o cabelo completamente desgrenhado. Mas logo a reconheceu. Não era seguramente a bela Harriet Simpson de outros tempos, a que vira nos insuspeitos écrans da TV. Era decididamente outra.
Havia sido raptada havia 173 dias. Até a sua morte fora por duas vezes anunciada.
Mas mesmo assim viram-na olhar em redor, já que o sargento John Smith, outro membro da tripulação também se acercara para ajudar, e perante toda aquela escalavrada paisagem conseguiram vê-la exclamar com um breve sorriso nos lábios e um ar etéreo de felicidade, na limpidez do olhar:
"Oh God! Life is a wonderfull thing!"
" A vida uma coisa maravilhosa?!"
Apetecia-lhes era berrar um palavrão, mas contiveram-se.
"Estava ali uma lady...!
" Very well! Let´s go! Hurry! - disseram, trocando entre si um breve olhar, pensando na insanidade daquelas palavras.
"Não era de estranhar: a rapariga não devia estar muito bem...fora demasiado tempo..."
Era prreciso retirarem-se dali para fora quanto antes..."
E o helicóptero arrancou vertigionosamente em direcção ao céu trespassando ainda alguma fumaça que se acumulara e que agora se ia com o vento, esvaindo para os lados do Ocidente.

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