sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal de um Natal

Foi Natal.
Há mil e tantos anos,
Que vem vindo,
Vai indo,
Desiludindo

Hoje é Natal de fariseus,
Excluindo famintos e plebeus,
E quem estende a mão a outros natais,
Que são dias,
Que são iguais:
Dias sem perdão,
Sem coração,
Mas que são natais.

Este é o Natal dos milhões,
O Natal dos cifrões,
Que não distingue o bem do mal,
Mas que dizem ser Natal.

É o Natal da solidariedade,
Da clemência
E da amisade,
Também da ansiedade,
Das omnipotências,
Do rebate das consciências,
O Natal da gula,
Do samba e do peru,
Longe, bem longe
Daquele que o protagonizou,
E pensou,
Que viveu pobre,
Nasceu,
E morreu,
nu

É preciso pensar outro Natal,
Um Natal diferente,
Daquele que perdura ainda
na alma de muita gente.
Que vive se calhar,
no peito de algum irreverente
Ou até de alguém que talvez nem sequer seja crente,
Mas que é Natal

Natal de Alguém
Que das palhas de Belém foi à cruz,
Natal mais pequeno, mais pobre,
Mas com mais luz,
Natal que trouxe à Terra
Aquele que foi Jesus.

23.12.95
H.M.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

" Sinais de Infinito" - Livro a publicar brevemente - Umas linhas - do 22º. capítulo.

(...) E os dias foram passando. E os alimentos escasseando e chegando cada vez com menor regularidade, uma situação que obrigava a jovem a mover-se cada vez menos no reduzido espaço, para poupar as energias que lhe restavam.
Certa noite, numa daquelas em que a vigília era a companhia e a única forma de anular o tempo, foi surpreendida pelo inconfundível troar de canhões e de rebentamentos a alguma distância e pelo ruído de aviões sobrevoando a zona.
Aproximou-se da pequena abertura que a trazia ainda presa à vida, tentando prescrutar qualquer alteração nos ruídos que se iam adensando, numa tentativa de descodificar o que ali estava acontecendo.
E os rebentamentos foram-se aproximando. E o barulhos dos aviões também.
Naquela minúscula e coada luz da manhã que lhe entrava pelo pequeno orifício, que mal deixava entrar o ar, surgiu-lhe o que nunca dantes acontecera: sentiu medo, um medo fagedénico, que aos poucos se transformou em terror: terror de ali poder ficar soterrada no meio daquelas paredes e daquelas enormes pedras, que nem se lhes distinguia a cor, uma predição que inconscientemente a acompanhava em certos e esparsos momentos da noite.
E sem querer sentiu que os lábios se moviam numa precipitada prece, o que há muito não fazia. E por instantes regressou aos tempos da infância. E recordou a mãe profundamente católica. Ao que se dizia, a avó também, o havia sido. E que morrera soterrada no Saint Mary Hospital nos tempos do Blitz da Segunda Guerra Mundial.
Iria acontecer-lhe o mesmo?
E pensou: "Falar de Deus e com Deus faria naquele momento algum sentido? "
" Sim. Ele tinha de a ajudar...
"Ajudá-la? Ela que tantos anos O esquecera? E que não ajudara a avó, uma doce alma praticante?"
" Não aprendera na catequese, que Deus era infinitamente misericordioso?
Então se Ele existia e era misericordioso, era hora de se mostrar.
Estava mais do que nunca a precisar...
E uma voz corrosiva e irónica brotou lá do fundo da alma:
" Aquela que apelidavam de Diva, com medo??!"
" Que duvidava de mistérios, incluindo o de fé?!"
E sentiu vergonha, quase arrependimento.
Afinal a incoerência era humana - foi alguém sussurrando.
E recordara a mãe. Seus conselhos; seus reproches em relação à profissão que abraçara. As pequenas loucuras que praticara...
Depois desbobinara-se-lhe pela mente a visão de uma "parada fandanga", uma legião sombria de seres de rosto triste, resignado, a indicar-lhe que o fim talvez não estivesse longe.
E sentiu os impactos cada vez mais assustadores, talvez de mísseis, rockets ou outras armas que estavam a ser disparadas ali tão perto e a aproximarem-se cada vez mais, tanto que já lhes sentia o cheiro.
E um deles, com uma intensidade brutal projectara-a violentamente para o chão térreo e irregular.

A atmosfera era agora densa, sufocante, irrespirável.
Pó e escuridão fizeram-na soçobrar na penumbra em que ali nos últimos meses sobrevivera. Sentiu o chão rugoso morder-lhe o rosto e as mãos. Tentou apesar de tudo, manter-se calma e analisar a situação. Assim rezavam os manuais distribuídos em zonas de conflito e guerra que ninguém lia, e pôr-se ao corrente da situação.
"Havia derrocadas. Pedras e terras no interior".
Levantou-se lentamente com todo o custo, cuidado e receio de que algum estremecimento pudesse bulir o resto de estrutura, e encaminhou-se para aquele lado onde calculava encontrar-se a saída...
A poeira foi assentando e só então pôde verificar os danos que o brutal impacto causara. Eram imensos. Mas estava viva, um egoísmo que nem ao inconsciente, nem ao subconsciente passara despercebido.
Por instinto e rastejando tentou alcançar a porta.
Para quê? - pensara. Fechada como sempre, e com enorme fecho exterior, uma aldraba ferrugenta que ao sair fazia um ruído desencorajador, nunca seria possível.
Fez uma alquebrada tentativa, com a força que lhe restava e que não era muita. Fez outra e a porta cedeu.
Para seu espanto, a aldraba não havia sido reposta: a porta havia ficado aberta.
Mas não era tempo para reflexões, menos ainda para congeminações. Era preciso sair dali e depressa. Havia vários dias que não comia. Estava depaupurada; sem forças.
Galgou os degraus com dificuldade e divisou a luz do dia, que desapiedade e crua, impunemente lhe feria os olhos.
"Há quanto tempo a não via?!"
E sentiu nas narinas o odor palpitante da vida. E também o da morte trazido nos rebentamentos daquele vento gélido da manhã.
Uns raios tímidos de sol sem fulgor, iam-se libertando da linha do horizonte.
Era mais um dia que nascia no Médio-Oriente.
No céu um helicóptero volteava nas alturas como velho e faminto abutre localizando lá em baixo a sua presa.
Harriet olhou em redor. Tinha de se esconder em qualquer parte.
Não havia muito por onde escolher. Para além de uns penhascos espalhados a esmo, a aridez da terra perdia-se na distância.


A bordo da nave, o major Jerry Haunt vociferou, sobrepondo-se ao ruído infernal das pás e dirigindo-se ao navegador, o tenente McGrover:
- Look!
E de imediato baixou abruptamente o nariz do aparelho para reconhecer o que lá em baixo havia e chamado a sua atenção:
- My God - exclamou atónito - That´s a woman!
E acto contínuo, mesmo reconhecendo a dificuldade que se avizinhava, Haunt fez a perigosa manobra de aproximação entre as rochas que por ali se encontravam conseguindo com alguma dificuldade manter livre dos penhascos a hélice traseira, indo imobilizar o aparelho a poucos metros de distância do local onde vira a rapariga.
O homem saltou da nave imediatamente e veio fugindo ao encontro de Harriet.
- How do you feel?! exclamou exausto e ofegante.
- Very well - respondeu calmamente a rapariga.
Mas o oficial teve dificuldade em entender, pois a jovem mal se detinha de pé. Estava magra, suja e o cabelo completamente desgrenhado. Mas logo a reconheceu. Não era seguramente a bela Harriet Simpson de outros tempos, a que vira nos insuspeitos écrans da TV. Era decididamente outra.
Havia sido raptada havia 173 dias. Até a sua morte fora por duas vezes anunciada.
Mas mesmo assim viram-na olhar em redor, já que o sargento John Smith, outro membro da tripulação também se acercara para ajudar, e perante toda aquela escalavrada paisagem conseguiram vê-la exclamar com um breve sorriso nos lábios e um ar etéreo de felicidade, na limpidez do olhar:
"Oh God! Life is a wonderfull thing!"
" A vida uma coisa maravilhosa?!"
Apetecia-lhes era berrar um palavrão, mas contiveram-se.
"Estava ali uma lady...!
" Very well! Let´s go! Hurry! - disseram, trocando entre si um breve olhar, pensando na insanidade daquelas palavras.
"Não era de estranhar: a rapariga não devia estar muito bem...fora demasiado tempo..."
Era prreciso retirarem-se dali para fora quanto antes..."
E o helicóptero arrancou vertigionosamente em direcção ao céu trespassando ainda alguma fumaça que se acumulara e que agora se ia com o vento, esvaindo para os lados do Ocidente.