Olga Lysaya, professora do Conservatório, da cidade da
Horta, ia tangendo o velho órgão de tubos da igreja Matriz, enchendo o vetusto
templo, com o quarto andamento da Pastoral para órgão, de Yonson Sebastian
Bach.
Era noite de Natal e celebrava-se a Eucaristia, vulgarmente
chamada "Missa do Galo", um evento que me trazia recordações de outros tempos,
de outros natais, e a suavidade de uma infância, há muito deixada para trás,
perfume resguardado nos recônditos da alma, que extravasam em certos dias,
e em certos natais, tendo como suporte, a recordação da família, reunida à volta
da lareira, e a alegria inocente da prenda, ali na chaminé, enegrecida da
fuligem, exalando o acre-doce das lenhas verdes de pinho e acácia, misturadas no
"fumeiro" das morcelas e linguiças, que o pequeno e rotundo suíno, (miraculoso
mealheiro no tempo), havia reservado para aquele e outros dias festivos.
Era essa visão longínqua, que me mantinha preso à doçura da infância, e a todo
um mundo de inocência e virtudes, de proporções muito vincadas e eternas.
Pela mente, flutuavam as fantasmagorias de um tempo perdido,
retido nos escaninhos do peito: via-me caminhando na lonjura da vida, pela mão
da pessoa que então mais amava, minha Mãe, ambos curvados na força do vento, a
caminho da igreja. E pelas ruelas estreitas, sentia os mesmos aromas de
santidade, que àquela hora as pessoas recolhiam na alma, vindos das travessas
circundantes, fazendo daquela noite, o meu sonho da Natal: era um veleiro,
enxergado lá muito ao longe, ao passar pelo "portinho" da Calheta de Pêro de
Teive, o "Crioula", como singelamente me haviam informado, tão pequenino e
rasante nas águas, que me fazia cismar, como seria possível haver vida,
ali dentro. Era a suavidade de um intenso aroma de ananás, vindo de um armazém
ali por perto, aguardando o embarque para terras distantes, transportando-me a
outros e novos mundos, para além daquele mar profundo e imenso. Era o sino
da torre, arrulhando na noite, a voz de um Deus, que eu temia, por saber
tudo e estar em toda a parte, e que me acompanhava nas longas caminhadas
para a escola e me ajudava nas horas difíceis, que surgiam.
Uma infância de rica pobreza, em que as trivialidades
ganhavam o peso das grandes obras. Em que o respeito pela idade, era o respeito
pelo saber e pela experiência. Em que a vida, fazia sentido, porque era
conquistada, no dia-a-dia do sonho e da adversidade.
Os últimos acordes iam-se agora extinguindo, deixando na
mente das pessoas, o flutuar de um certo desencanto, porque expugnadas da
"ambrósia" exalada daquele velho instrumento, que nos graves profundos, fazia
ainda tremar peitos e encantar almas.
Naquele ambiente, esbatido e pensabundo, fui dando conta do
que fora aquele ano: um ano triste, talvez muito igual a tantos outros, caídos
na bruma do tempo, mas sempre tão diferentes para cada pessoa, como pessoa e
como ser: as guerras recrudescendo para os lados da Jugoslávia. Um Zaire,
primitivo e tribal, fazendo do genocídio um jogo trivial, em finais do século
XX. Os atentados à bomba, na Irlanda e no Médio Oriente. A intolerância
religiosa. As seitas em holocausto, buscando a morte como alivio para as suas
vidas sem sentido. A pedofilia, um "cancro" de apetências e sexo. Os acidentes
nas estradas: a loucura da vertigem, um mundo de técnica e de ciência, ao
serviço do humano, mas em que as grandes ânsias, não encontravam respostas.
E a dor, derramada pelos quatros cantos da Terra, pousara
também em mim inesperadamente, naquilo que julgara pertencer-me: na família. A
companheira de tantos e tantos anos, partira...E uma solidão, sem medida e sem
rosto, entrara por uma porta escancarada, a mesma que se mistura à incredulidade
dos sofridos: estava só, a enfrentar só, o fim dos Invernos da vida.
Ideias difusas, sequestraram-me a alma, olhando um
mundo vazio, sem esperança, sem sequer haver lugar para sonho. E interrogações
variadas foram-me assaltando, por um ror de tempo sem resposta, fazendo-me
concluir do burlesco e sem sentido, de que se reveste a vida. Não éramos um
subproduto\\\\\\, de forças cegas, apenas animado de movimento: tínhamos direito
a um destino, nunca ao solitário esquecimento da tumba.
Estas e outras questões haviam contribuído para
que fosse levado ao convívio daquela assembleia: um evento que era afinal a
revisitação de outros t6empos, de outros natais, forjados nos tempos de criança,
da ingenuidade e da fé.
Assim entrara naquela igreja para assistir àquela
missa, referência de um necessidade ou finalidade existencial, que me tremeluzia
ni íntimo.. Essa era a referência de um passado, urdido de coisas simples,
esfumado, misto de ideias e factos, palavras, até sons, companheiros ao longo do
tempo. Enfim, um pequeno e grande que respondia ao âmago de uma fé abalada, mas
ainda porventura latente.
- Em nome do Pai, E do Filho, e do Espirito Santo
- foi em surdina dizendo o sacerdote, enquanto dava a ablução à onda de
fiéis, que num "Ámen", ecoado e sentido, lhe confirmavam a fé.
- Ide em paz, e que o Senhor vos acompanhe - rematou o
sacerdote, deixando fruir na atmosfera, de aromas e silêncios, um naco de
aliviada paz enternecida.
Rilheiras de gente, foram-se projetando para a grande
porta almofadada e os olhares cautelosos, num ritual, que a rotina aconselhava,,
dirigiam para as escadas imensas, tão grandes, quanto
gigantescas ondas, em tardes de Agosto.
Por aqui e por ali, iam-se trocando as saudações,
no vaivém da tradição e os vultos iam-se perdendo na mansidão da noite.
Vindo por perto,, chegava um agreste farfalhar de
franças, ondeando na direção do vento.
Dois arruamentos em declive, mais ou menos simétricos, projetavam-se para
o centro da pequena cidade. Instintivamente fui levado a deslizar por aquele,
que me parecia ficar visivelmente mais por perto. A Calçada, lisa e húmida,
mostrava-se escorregadia, não se compadecendo, por aquele, que àquela hora,
mais temerariamente estugasse o passo.
Uma enorme e imensa criptoméria, decapitada na
pujança da vida, trazida dos matos da Caldeira, fazia as "honras" de um
jardinzito fronteiriço, que vergada, ia deixando tremeluzir algumas
lâmpadas multicores, escapadas à gula da intempérie, e que teimavam ainda
em dar o seu sinal de vida, derramando riachos irisados, numa velha
parede, que por ali ainda havia.
E as pessoas iam-se dispersando na quieta
pachorrência dos silêncios da noite.
Passava agora por um Largo, que ostentava a nome de um
dos mais ilustrados políticos do século XIX, nascido ali perto, numa ruela
ali mais acima, e que merecera, não só as honras do monarca D Luís, como
de todos os escadâmes do poder na capital portuguesa - Lisboa. Seu
nome António José D´Ávila, Conde e mais tarde, Duque do reino: uma pequena
praça, ladeada pela velha casa que aboletava a policia e o sumptuoso edifício
dos CTT E lá estava ele sempre - o Duque, bem no
centro, com a sua figura circunspecta, rosto magro, escanteado, longas cãs e
escorrerem-lhe pela face, e olhar esfíngico, posto no horizonte ou no
infinito, resplandecente no verdete do bronze, a imprimir-lhe um ar de eterno
mensageiro. Na mão, na sua mão direita, bem à altura da cintura, delicadamente
enrolado, exibia-se a chancela régia, no decreto que dera, à então vila da
Horta, a alforria de cidade, fazendo dela, a terceira no arquipélago, feito que
lhe valera o perpetuar do nome, nos anais da história da terra. Personalidade
multifacetada de homem e de político, atingira no seu tempo as honrarias que
todo o homem pode desejar, tendo percorrido e por vezes diversas todos os
escadámes do poder.
Homem interessante que nunca enjeitara a sua origem
humilde, fazendo mesmo relembrar aos menos conhecedores ou bajuladores,
principalmente adversários políticos, quando ou a quem,a ocasião aconselhava. Em
determinado encontro palaciano, ter-se-á mesmo apresentado como, "Duque
D´Avila e Bolama," mui digno filho de uma lavadeira e de um sapateiro,
afinal uma personalidade para quem os "alcatruzes" do poder nunca fizeram
olvidar a terra, nem a modesta casa em que viera ao mundo, numa ruela
estreita, para os lados de um velho convento carmelita, convertido mais
tarde em aquartelamento militar, após a implantação da República. O seu
fulgurante percurso terá sido talvez e apenas, "manchado",, por um incidente
literário, liderado por outro seu patrício açoriano, , de nome Antero de
Quental, , que na ousadia dos verdes anos, imbuído de ideais universalistas, se
terá oposto ao "status" literário do tempo em Portugal, período em que o Duque
detinha o mais alto cargo da hierarquia do Estado no tempo.
Na sua dimensão de homem,
mais do que na de político, não terá sido diminuído. E pelo desassombro,
pelas origens humildes, pelo amor acrisolado à terra, era credor da minha
inteira admiração.
E num relance fui dando conta da diferençados
comportamentos entre os publícolas do tempo, e dos que agora andavam na ribalta,
do seu prestigio, da sua abnegação, do seu servir os propósitos da terra. E do
proverbial marasmo, com que se costumava rotular a vida nas ilhas e as
suas gentes, que sem deixar de ter algum foro, contrariava grandes eventos
e grandes vultos, que em momentos cruciais da nação portuguesa,
surgiram como continuadores de uma gesta nascida havia muitos anos.
Senti-me reconhecido com a atitude de uma edilidade, que um século após o
seu nascimento, ter-lhe testemunhado algum apreço. pelo que fez, e lamentei
a hipocrisia, que em muitos casos, a morte vai escamoteando: é-se digno, bom,
humanista, quando a luz se extingue. Por vezes. sendo o quanto baste. Quantos o
mereceram? Quantos o merecem?