terça-feira, 22 de dezembro de 2020

CONTO DE NATAL - O NATAL DE UMA PRINCESA

     Olga Lysaya, professora do Conservatório, da cidade da Horta, ia tangendo o velho órgão de tubos da igreja Matriz, enchendo o vetusto templo, com o quarto andamento da Pastoral para órgão, de Yonson Sebastian Bach.
     Era noite de Natal e celebrava-se a Eucaristia, vulgarmente chamada "Missa do Galo", um evento que me trazia recordações de outros tempos, de outros natais, e a suavidade de uma infância, há muito deixada para trás, perfume resguardado nos recônditos da alma, que extravasam  em certos dias, e em certos natais, tendo como suporte, a recordação da família, reunida à volta da lareira, e a alegria inocente da prenda, ali na chaminé, enegrecida da fuligem, exalando o acre-doce das lenhas verdes de pinho e acácia, misturadas no "fumeiro" das morcelas e linguiças, que o pequeno e rotundo suíno, (miraculoso mealheiro no tempo), havia reservado para aquele e outros dias festivos.
Era essa visão longínqua, que me mantinha preso à doçura da infância, e a todo um mundo de inocência e virtudes, de proporções muito vincadas e eternas.
     Pela mente, flutuavam as fantasmagorias de um tempo perdido, retido nos escaninhos do peito: via-me caminhando na lonjura da vida, pela mão da pessoa que então mais amava, minha Mãe, ambos curvados na força do vento, a caminho da igreja. E pelas ruelas estreitas, sentia os mesmos aromas de santidade, que àquela hora as pessoas recolhiam na alma, vindos das travessas circundantes, fazendo daquela noite, o meu sonho da Natal: era um veleiro, enxergado lá muito ao longe, ao passar pelo "portinho" da Calheta de Pêro de Teive, o "Crioula", como singelamente me haviam informado, tão pequenino e rasante nas águas, que me fazia cismar, como seria possível  haver vida, ali dentro. Era a suavidade de um intenso aroma de ananás, vindo de um armazém ali por perto, aguardando o embarque para terras distantes, transportando-me a outros e novos mundos, para além daquele mar profundo e  imenso. Era o sino da torre, arrulhando na noite, a voz de um Deus, que eu temia, por  saber tudo e estar em toda a parte, e que me acompanhava  nas longas caminhadas para a escola e me ajudava nas horas difíceis, que surgiam.
     Uma infância de rica pobreza, em que as trivialidades ganhavam o peso das grandes obras. Em que o respeito pela idade, era o respeito pelo saber e pela experiência. Em que a vida, fazia sentido, porque era  conquistada, no dia-a-dia do sonho e da adversidade.
     Os últimos acordes iam-se agora extinguindo, deixando na mente das pessoas, o flutuar de um certo desencanto, porque expugnadas da "ambrósia" exalada daquele velho instrumento, que nos graves profundos, fazia ainda tremar peitos e encantar almas.
     Naquele ambiente, esbatido e pensabundo, fui dando conta do que fora aquele ano: um ano triste, talvez muito igual a tantos outros, caídos na bruma do tempo, mas sempre tão diferentes para cada pessoa, como pessoa e como ser: as guerras recrudescendo para os lados da Jugoslávia. Um Zaire, primitivo e tribal, fazendo do genocídio um jogo trivial, em finais do século XX. Os atentados à bomba, na Irlanda e no Médio Oriente. A intolerância religiosa. As seitas em holocausto, buscando a morte como alivio para as suas vidas sem sentido. A pedofilia, um "cancro" de apetências e sexo. Os acidentes nas estradas: a loucura da vertigem, um mundo de técnica e de ciência, ao serviço do humano, mas em que as grandes ânsias, não encontravam respostas.
     E a dor, derramada pelos quatros cantos da Terra, pousara também em mim inesperadamente, naquilo que julgara pertencer-me: na família. A companheira de tantos e tantos anos, partira...E uma solidão, sem medida e sem rosto, entrara por uma porta escancarada, a mesma que se mistura à incredulidade dos sofridos: estava só, a enfrentar só, o fim dos Invernos da vida.


     Ideias difusas, sequestraram-me a alma, olhando um mundo vazio, sem esperança, sem sequer haver lugar para sonho. E interrogações variadas foram-me assaltando, por um ror de tempo sem resposta, fazendo-me concluir do burlesco e sem sentido, de que se reveste a vida. Não éramos um subproduto\\\\\\, de forças cegas, apenas animado de movimento: tínhamos direito a um destino, nunca ao solitário esquecimento da tumba.
     Estas e outras  questões haviam contribuído para que fosse levado ao convívio daquela assembleia: um evento que era afinal a revisitação de outros t6empos, de outros natais, forjados nos tempos de criança, da ingenuidade e da fé.
     Assim entrara naquela igreja para assistir àquela missa, referência de um necessidade ou finalidade existencial, que me tremeluzia ni íntimo.. Essa era a referência de um passado, urdido de coisas simples, esfumado, misto de ideias e factos, palavras, até sons, companheiros ao longo do tempo. Enfim, um pequeno e grande que respondia ao âmago de uma fé abalada, mas ainda porventura latente.
     - Em nome do Pai, E do Filho,  e do Espirito Santo - foi em surdina dizendo o sacerdote, enquanto dava a ablução à onda de fiéis, que num "Ámen", ecoado e sentido, lhe confirmavam a fé.
     - Ide em paz, e que o Senhor vos acompanhe - rematou o sacerdote, deixando fruir  na atmosfera, de aromas e silêncios, um naco de aliviada paz enternecida.
     Rilheiras de gente, foram-se projetando para a grande porta almofadada e os olhares cautelosos, num ritual, que a rotina aconselhava,, dirigiam para as escadas  imensas,  tão grandes, quanto gigantescas ondas, em tardes de Agosto.
     Por aqui e por ali,  iam-se trocando as saudações, no vaivém da tradição e os vultos iam-se perdendo na mansidão da noite.
     Vindo por perto,, chegava um agreste farfalhar de franças, ondeando na direção do vento.
 Dois arruamentos em declive, mais ou menos simétricos, projetavam-se para o centro da pequena cidade. Instintivamente fui levado a deslizar por aquele, que me parecia ficar visivelmente mais por perto. A Calçada, lisa e húmida, mostrava-se escorregadia, não se compadecendo, por aquele, que àquela hora,  mais temerariamente estugasse o passo.
     Uma enorme e imensa criptoméria,  decapitada na pujança da vida, trazida dos matos da Caldeira, fazia as "honras" de um jardinzito fronteiriço, que vergada, ia deixando tremeluzir algumas lâmpadas multicores, escapadas à gula da intempérie, e que teimavam ainda em dar o seu sinal de vida, derramando  riachos irisados, numa velha parede, que por ali ainda  havia.
      E as pessoas iam-se dispersando na quieta pachorrência dos   silêncios da noite.
     Passava agora por um Largo, que ostentava a nome de um dos mais ilustrados políticos do século XIX, nascido ali perto, numa ruela ali mais acima, e que merecera, não só as honras do monarca D Luís, como de todos os escadâmes do poder na capital portuguesa - Lisboa. Seu nome António José D´Ávila, Conde e mais tarde, Duque do reino: uma pequena praça, ladeada pela velha casa que aboletava a policia e o sumptuoso edifício dos CTT     E lá estava ele sempre -  o Duque, bem no centro, com a sua figura circunspecta, rosto magro, escanteado, longas cãs e escorrerem-lhe pela face, e olhar esfíngico, posto no horizonte ou no infinito, resplandecente no verdete do bronze, a imprimir-lhe um ar de eterno mensageiro. Na mão, na sua mão direita, bem à altura da cintura, delicadamente enrolado, exibia-se a chancela régia, no decreto que dera, à então vila da Horta, a alforria de cidade, fazendo dela, a terceira no arquipélago, feito que lhe valera o perpetuar do nome, nos anais da história da terra. Personalidade multifacetada de homem e de político, atingira no seu tempo as honrarias que todo o homem pode desejar, tendo percorrido e por vezes diversas todos os escadámes do poder.
     Homem interessante que nunca enjeitara a sua origem humilde, fazendo mesmo relembrar aos menos conhecedores ou bajuladores, principalmente adversários políticos, quando ou a quem,a ocasião aconselhava. Em determinado encontro palaciano, ter-se-á mesmo apresentado como,  "Duque D´Avila e  Bolama," mui digno filho de uma lavadeira e de um sapateiro, afinal uma personalidade para quem os "alcatruzes" do poder nunca fizeram olvidar a terra, nem a modesta casa em que viera  ao mundo, numa ruela estreita, para os lados de um velho  convento carmelita, convertido mais tarde em aquartelamento militar, após a implantação da República. O seu fulgurante percurso terá sido talvez e apenas, "manchado",, por um incidente literário, liderado por outro seu patrício açoriano, , de nome Antero de Quental, , que na ousadia dos verdes anos, imbuído de ideais universalistas, se terá oposto ao "status" literário do tempo em Portugal, período em que o Duque detinha o mais alto cargo da hierarquia do Estado no tempo.
          Na sua dimensão de homem, mais do que na de político, não terá sido diminuído. E pelo desassombro, pelas origens humildes, pelo amor acrisolado à terra, era credor da minha inteira admiração.
     E num relance fui dando conta da diferençados comportamentos entre os publícolas do tempo, e dos que agora andavam na ribalta, do seu prestigio, da sua abnegação, do seu servir os propósitos da terra. E do proverbial marasmo, com que se costumava  rotular a vida nas ilhas e as suas gentes, que sem deixar de ter algum foro, contrariava grandes eventos e grandes  vultos, que em momentos cruciais da nação portuguesa, surgiram como continuadores de uma gesta nascida havia muitos anos.
Senti-me reconhecido com a atitude de uma edilidade, que um século após o seu nascimento, ter-lhe testemunhado algum apreço. pelo que fez, e lamentei a hipocrisia, que em muitos casos, a morte vai escamoteando: é-se digno, bom, humanista, quando a luz se extingue. Por vezes. sendo o quanto baste. Quantos o mereceram? Quantos o merecem?