Com apetecível apresentação gráfica, Sismo na Madrugada (edição de autor, 2003) é um belíssimo romance da autoria de Humberto Moura, que no conto e na novela, e através dos Livros Na Diáspora Do Tempo (edição da Câmara Municipal da Horta, 1996) e Errância de Pedra e de Sal (edição de autor, 1998), já havia dado boa conta de si como escritor de apreciáveis recursos.
Deste autor micaelense radicado desde 1960 na ilha do Faial, o mínimo que para já se poderá dizer é que escreve com talento, honestidade e exigência estética, sendo possuidor de uma capacidade descritiva, pois que o romance em apreço flui e ecoa ao longo de 361 páginas, em vozes e escritas de grande fôlego narrativo.
Romance de um tempo e de um espaço (a acção parte da ilha para o mundo e decorre a partir dos anos 30 até à ocorrência do sismo de 9 de Julho de 1998), Sismo na Madrugada é também um romance de uma personagem, à volta da qual circulam muitas personagens. Todas elas representam um percurso individual de auto(descoberta e aprendizagem da vida e do mundo.
Precisamente porque a ilha é um espaço aberto ao mundo, o romance dá conta da história de um homem, de seu nome Alberto Quevedo Silveira da Neiva Brum da Terra, que, aos 17 anos de idade, deixa a sua ilha do Faial e parte para a grande viagem da vida. A narrativa estabelece uma bem conseguida (e dialéctica) relação entre a ilha e o mundo, funcionando a ilha como uma alegoria ou um símbolo do mundo. A ilha, que repele e atrai, é no fundo, um eterno retorno, pois que representa a memória primordial e afectiva e simboliza a ânsia de ficar e/ou de partir.
Por isso há em Quevedo, um desejo de viagem, uma ânsia de largar amarras e de ultrapassar horizontes. E, a propósito, convirá deixar aqui um primeiro aviso à navegação: a capa e a contracapa desta obra, com feliz concepção e digitalização de Paulo Moura, remetem-nos para o sismo de 9 de Julho. Porém, este não é um livro sobre a história de um sismo, mas sobre o destino e a errância de um homem que transporta uma ilha e uma mundividência.
Sismo na Madrugada é pois, uma viagem e é como viagem permanente que toda a obra se articula. Uma viagem de muitas partidas e de poucos regressos. Porque a viagem é a busca de uma identidade e, por isso mesmo, de auto-conhecimento e de auto-revelação. O romance arranca com a viagem de Quevedo, a bordo do navio “Lima” através da qual o narrador traça o perfil das cidades da Horta, Angra do Heroísmo, Ponta Delgada e Lisboa, captando nelas todo o imaginário e toda a geografia afectiva, social e histórica. Mas essa viagem não se circunscreve ao simples registo de anotações de circunstância física e material, mas aos poucos vai-se transformando na peregrinação interior de Quevedo, num quadro em que se expõem as marcas do seu próprio dilaceramento íntimo, ele que sendo um homem estranho, misterioso e que, conhecendo mais tarde, a riqueza e a glória, viverá confrontado com perdas, danos e perdições.
Através desta viagem, o narrador encontrou um pretexto (ou um pré-texto) para ficcionar a partir de acontecimentos reais e incontornáveis da História europeia e mundial do século XX. E é através do olhar de Quevedo, jornalista de profissão, que nos são dadas descrições impressionantes sobre a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial. È Quevedo que, na qualidade de repórter de guerra e com apenas 21 anos de idade, (d)escreve esses dois conflitos armados, dando vivo testemunho de horrores, perplexidades, inquietações, vicissitudes e dramas. Mas é Humberto Moura que, escondendo-se atrás do narrador, denuncia a barbárie e a crueldade da guerra e faz um apelo à solidariedade universal, à concórdia e à esperança. Porque a literatura é isso mesmo: um espaço de transfiguração e questionamento da realidade. E é aliás, muito bem conseguida, neste romance, a articulação texto literário e documento histórico; memória e facto; realidade e símbolo. Acima de tudo, este é um livro sobre a condição humana, as feridas da alma e a memória dos tempos.
Sismo na Madrugada é também um romance de encontros e reencontros, partidas e chegadas, sonhos e pesadelos, afectos e perdições, lonjura e saudade, distância e ausência, vida e morte, no registo mais sentido de uma escrita pessoalíssima e profundamente humana.
Vejamos agora como tudo isto se articula, lançando um olhar ao percurso de Quevedo e à vasta galeria de personagens que atravessam o romance – gente de grande dimensão humana e fundura psicológica. Porque falar de Humberto Moura é, ainda e sempre, falar de minuciosa observação do humano.
Em pleno palco de guerra, Quevedo instala-se em Paris, vive in loco, a guerra e dela vai dando notícias através de um Diário que escreve (e que ocupa todo o capítulo XVIII do romance). Ferido com um estilhaço numa perna, vai para Londres e em Saint Mary’s Hospital recebe tratamento. Aí reencontra Harriet a inglesinha da Companhia dos Cabos Telegráficos Submarinos, loira e de olhos azuis, que na Horta, fora o grande amor da sua infância, e que é agora estudante de Medicina…Numa cidade sitiada, cercada e ameaçada, Quevedo e Harriet sobrevivem a um quotidiano incerto e entregam-se a um intenso envolvimento amoroso. Harriet alimenta sonhos e traça projectos. O destino é-lhe porém adverso: já médica, é vítima de um bombardeamento efectuado por caças alemães sobre Londres, avindo a morrer sob os escombros de próprio hospital. Esta morte possui tamanha carga simbólica, porque é bem um grito de revolta pelo absurdo da guerra.
Entretanto Quevedo escreve para os grandes jornais britânicos “Daily Mail” e “Chronicle”, bem como para os grandes jornais americanos. Faz amizade com Spencer, também jornalista e, durante a guerra, piloto da Royal Air Force; priva de perto com Mr. Winston, tio de Spencer, político e analista de questões ligadas ao espaço europeu, e Sir Cavendish, director do Jornal “Daily Mail”, onde é colaborador. A guerra leva-o para África, onde durante algum tempo se lhe perde o rasto.
Sem nunca conseguir esquecer Harriet, Quevedo não resiste aos encantos de Mirita, cabo-verdiana bela e apetecível, polarização do desejo e com quem ele partilha iniciáticas navegações eróticas, (d)escritas com mestria narrativa (são de antologia as páginas 88, 89, 90 e 91). Mais tarde, Mirita distinguir-se-á como professora catedrática, ganhando prestigio dentro e fora de Portugal.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, Quevedo fixa-se nos Estados Unidos da América, tornando-se jornalista de referência do “New York Times”, ele que começara a sua carreira jornalística como revisor do jornal “O Telégrafo”. Escreve dois livros que lhe trazem fama e reconhecimento internacional: “Why?” e “Proscritos”. Só regressará aos Açores trinta anos mais tarde, por morte de sua mãe, D. Rosalina, com quem manteve ao longo dos anos abundante correspondência. Quando aquela, lhe dá conta, por telegrama, que o marido, dr. Terra morreu, Quevedo não reage nem se emociona, já que a relação que mantinha com o pai era distante e poucos afectos. Já o mesmo não acontece quando recebe a notícia da morte da mãe.
Na cidade da Horta, Quevedo reencontra Aníbal, seu amigo colega, graciosense carismático e dono da pensão e do restaurante “Graciosa”.
Quevedo é pois, um homem da errância e da peregrinação; é um homem em dispersão que, na viagem, busca caminhos de felicidade e de sonho. O seu amigo Quental é precisamente o oposto, pois que após vários anos de vivência lisboeta e obtido o “canudo” (fruto da ânsia de prestigio social e familiar que lhe fora incutido pelos pais), regressa à ilha e aí arrasta uma penosa existência de jurista. Vive em Ponta Delgada, “uma cidadezinha onde imperava o obsoletismo caduco e a mania das famílias e dos brasões”(pag. 159). É um falhado, um desafortunado e um vencido na vida. Quevedo é cosmopolita e é cidadão do mundo e luta por um mundo melhor. Quental é regionalista, resigna-se a um quotidiano pardacento e confronta-se com a “pasmaceira” dos estreitos limites da ilha de São Miguel; Quevedo vive um tempo universal; Quental é homem insulado e é uma figura trágica: desencantado com a vida, e cumprindo simbolicamente um destino familiar, suicida-se em Ponta Delgada, deixando viúva Roxana Dent (médica faialense e que fora musa inspiradora na adolescência de ambos) e órfão o filho Alberto, que mais tarde virá a conhecer os horrores da Guerra Colonial portuguesa.
Quevedo regressa à Europa e revisita terras de Espanha. Em Ponte Vedra, saberá da notícia da morte de D. Dolores, espanhola que outrora lhe dera abrigo e guarida num dia em que fora assaltado por dois marroquinos e salvo pelo cão “São Telmo”. A criada Maria cumpre o desejo de Dolores ao entregar a Quevedo a chave de casa que lhe fora deixada em testamento. Fixa temporariamente residência naquela localidade, recorda o seu amigo de outros tempos, o “Rola”, pescador e anarquista, faz amizade com Cambado e Bexiga, velhos pescadores espanhóis, e torna-se íntimo do jovem Paco.
Entretanto ocorre o 25 de Abril de 1974, Ao passar por Lisboa, Quevedo apercebe-se que muita coisa mudou. Já não existem os jornais “O Século” e “A República” (para onde colaborara) e é-nos dada uma curiosa reflexão sobre “a esquerda iniciática e exuberante”.
Quevedo recorda os amigos dos tempos de Lisboa: o Goulart, um misto de D. Quixote e de D. Sebastião, é picaroto, republicano, agitador, anarco-sindicalista, tipógrafo que, em tempo de opressão e intolerância, luta pelos valores da democracia, da liberdade e da justiça social, vindo e morrer vítima da Guerra Civil de Espanha; o Santinho, companheiro de Goulart, um “homenzinho de Moura, toda a sua vida tipógrafo, giboso e bexiguento, que vivia envolvido numa cábula de silêncio” (p. 96); Juventino, graciosense, que depois de ter transitado pelo seminário de Angra. Vai estudar para Lisboa; terminada a licenciatura em Românicas, regressará aos Açores onde exerce o professorado, tornando-se mais tarde, reitor do Liceu de Angra do Heroísmo; o “Não me Lixem”, carismático professor da faculdade de Direito de Lisboa; O Ormonde, terceirense, jornalista; o Rosinha, director do jornal “o Século”; Victorino, escritor e poeta; Natália, poetisa; o Jardim, madeirense, criado do café Palladium; e o Gambôa, figura de recorte queirosiano, personalidade do “bas-fond” lisboeta, ser desprezível, empertigado e arrogante…
Este romance é também uma viagem por culturas e saberes. Aqui se convocam referências como Cristo, Sócrates, Platão, Rosseau, Lock, Engels, Nietzcge, Ravaisson, Lachalier, Guyau, Assis, Tolstoi, Proudhon, Voltaire, Lenine, Marx, Schweitzer, Cook, Darwin, Guy de Maupassant, Kant, Flaubert, Balzac, Hegel, Mahomed, Sain-Exupery, entre outros. E aqui se fala de Camões, Bocage, Garrett, Júlio Diniz, António Nobre, Camilo Castelo Branco, Pe. António Vieira, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, etc. Aqui se evoca Aristides Sousa Mendes, Humberto Delgado e muitas outras personalidades e acontecimentos ligados à História do século XX.
Sismo na Madrugada é ainda lugar de confronto, de denúncia de verdades ilusórias e de renúncia às máscaras de um quotidiano alienante. Porque há este dado inapelável: Portugal chegou tarde à História…E quase todas as personagens deste romance sofrem as consequências disso mesmo. Daí os olhares (críticos vagamente satíricos) que o narrador lança sobre um tempo português fascizante e sobre as mitologias do nosso passado recente. Aqui se questiona o “Portugal rústico, rural, triste e teimosamente pobre, com 4 milhões de analfabetos, um recanto sossegado da Europa, mas muito longe dela, dividida internamente em dois” e se interroga as duas ditaduras ibéricas, a propósito da mundividência de Quevedo, que outrora entrevistara generais (Franco, Mola, Durruti, Montgomery. MacArthur e Einsenhour), escrevera para os melhores jornais do mundo, fizera televisão e se relacionara com pessoas famosas, como Churchill, Truman, Kennedy, Gandhi, Picasso, John dos Passos, Steinbeck, Malraux, entre outros.
Homem de todos os lugares e de todas as geografias, Quevedo para alèm da Europa calcorreara terras de África, Ásia, Oceânia, percorrera as Filipinas, conhecera a fama, a glória, dando-se mesmo ao luxo de recusar medalhas, uma das mãos do próprio Jorge VI.
Ao regressar ao Faial, Quevedo é, porém, um homem pobre, velho, desgastado e despojado de bens materiais. Ele que possuíra imensa riqueza. É agora conhecido como “o homem da boina preta”. Ele que teve tudo, deu tudo aos outros, numa atitude de partilha e solidariedade, com o franciscanismo a rondar por perto.
Este regresso de Quevedo à sua ilha servirá para que o narrador teça uma muito bem conseguida reflexão sobre o passado e o presente da Horta, intrometendo-se na narração: capta não só o imaginário daquela cidade, como também (d)escreve, de forma admirável, as suas gentes e os seus lugares.
As ilhas que Quevedo deixara já não são as mesmas que vem agora encontrar. Foram muitas as mudanças que nelas entretanto se operaram. Por exemplo, o Dia de S Vapor deu lugar ao Dia de S. Avião. E os navios “Lima” e “Carvalho Araújo” foram substituídos pelos grandes aviões da Douglas e da Boeing DC-4 (Skymasters) e Super Constellations.
Na cidade da Horta, Quevedo instala-se numa velha casa sita à Rua do Arco (“Casa do Portão Verde”, junto ao solar dos Arriagas) e vive sem grandes meios de subsistência, sendo “homem de encantos perdidos e sonhos desfeitos” (p. 260). Não possui familiares e a sociedade hortense considera-o esquisito, estranho, misterioso. Tem por companhia, um gato que ele salvou e a que pôs o nome de “Sócrates” (o capítulo XVIII é-lhe inteiramente dedicado). Junto da casa existe um velho dragoeiro a que deu o nome de Anaxágoras. O gato, velho como o dono, é uma personagem do livro, pois que é tratado (por Quevedo e pelo narrador) como se de gente se tratasse. Velho é também o dragoeiro que, um dia, desata a “falar” com Quevedo, num discurso de grande alcance ecológico e humanitário e num apetecível registo de efabulação do fantástico, um dos momentos altos deste romance (cf. Capítulo XIX)
Vivendo o peso da solidão da ilha, Quevedo integra-se na tertúlia do Largo da Matriz, a funcionar na “Drogaria Hortense” e frequentada, entre outras, por três personagens de grande recorte humano e de diferentes posicionamentos culturais e ideológicos: João Maria, também conhecido por Dr. João da Drogaria, ou Dr. “Sabichão”, proprietário daquele estabelecimento (misto de farmácia e drogaria), é solteiro e solitário. Os diálogos ali mantidos funcionam como pretexto para se comentar os mais variados aspectos relacionados com a sociedade faialense; Sampaio, amigo de Quevedo dos tempos de Liceu e de Lisboa, envolveu-se, quando era alferes, em intentonas para derrubar Salazar, tendo sido expulso do Exército, ficando conhecido por “tenente”. É um homem de cultura e de ciência, sendo contra a ordem e o poder estabelecido, pois nutre um ódio visceral a tudo o que seja regimes, chefes, políticos e políticas. Possui apurado sentido crítico e de humor e é através dele que são lançados olhares (críticos e mordazes) à cidade da Horta e às suas gentes. Com a instauração da democracia em Portugal, é reintegrado no Exército com a patente de capitão, sendo então tratado por capitão Sampaio. Anos depois morrerá com um ambíguo sorriso nos lábios – porque foi sempre um homem que, durante toda a vida, desafiou toda e qualquer forma de poder; José Nabais, o mais velho da tertúlia, funciona como contraponto ao capitão Sampaio, pois que é homem conservador e vagamente monárquico. Viúvo, “dado a males e enxaquecas” possuidor de sentido crítico e de um humor muito peculiar, é amigo de longa data de Quevedo. Começou por ser cabografista das Companhias dos Cabos Telegráficos Submarinos. Depois obteve emprego nos CTT, aí trabalhando até à reforma.
Como já se disse, Sismo na Madrugada é um romance de encontros e reencontros, de chegadas e apartamentos. Tal situação estará patente até ao final do livro. Neste contexto, surge-nos uma outra personagem: Jean Jaques Feuillé, que aos 73 anos de idade a bordo do seu barco “L’Espoir” chega à cidade da Horta como vencedor da Regata das Hortênsias. Fora ele que, pouco antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, dera guarida a Quevedo na sua casa em Paris. Jornalista aposentado, Feuillé fora também repórter de guerra, escrevendo para o “Le Monde”.
Após longos anos sem se ver, Quevedo e Feuillé reencontram-se no Café “Peter”, onde conversam longamente sobre as suas vidas e o desconcerto do mundo. E também da solidão e da velhice das suas vidas. São afinal dois heróis vencidos.
“Olharam os copos já gastos de gin, e ficaram-nos trespassando demoradamente, através dos cubos de gelo, que haviam ficado a secar e a gelar as “guelras” lá mais para o fundo, num extinguir lento e sem glória, quase como aquele que acompanhava agora as suas vidas.
E fizeram da mudez, uma vez mais, um grito de silenciosa solidariedade na revolta. Afinal eles eram homens solitários, infelizes, avançados na idade…”, pág. 319.
Atente-se nesta bem conseguida imagem do gelo que se derrete e da vida que se esvai. Feuillé convida o amigo a viajar com ele, mas Quevedo recusa porque não quer deixar o velho gato “Sócrates” atrás, achando que se levasse o animal consigo, este não sobreviveria à longa viagem.
Feuillé parte sozinho. Durante algum tempo, manterá correspondência com Quevedo. Até que um dia surge a notícia trágica: o barco de Feuillé é encontrado abandonado…O Skipper morre no mar, não conseguindo passar o Cabo Horn…
Quevedo vive a mágoa, a saudade, a solidão, o “pesadume” e a tristeza que lhe deixam os amigos que vão morrendo: Nabais, Sampaio, Feuillé…Para exorcizar a memória, vai escrevendo nos jornais locais, artigos que fazem algum furor e que vêm assinados com as iniciais “Q.N.” e, por isso mesmo, passa a ser conhecido pela alcunha de “Quebra Nozes”. Ao mesmo tempo vai escrevendo um diário.
Um dia conhece, por mero acaso, uma jornalista da BBC que, fazendo reportagem televisiva na Horta durante a Semana do Mar, busca também as suas raízes familiares. Chama-se Harriet Simpson, é neta de Harriet, filha de Richard O’Neil, director da Companhia Inglesa, a Eastern Telegraph Coy, como já foi referido, foi ela o grande amor da juventude de Quevedo, e que mais tarde, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, morre vítima de raids aéreos quando exercia medicina. A jornalista anda em busca do avô, dá informações sobre o mesmo e pergunta se Quevedo conhece tal pessoa. Este diz que não, ficando de um momento para o outro, a saber que está perante a neta…Apesar de negar tudo, Quevedo chora e Harriet Simpson apercebe-se, sem o dizer que aquele é o avô que procura. Quando fica só Quevedo fica feliz por saber que, afinal deixou descendência e, assim, sente-se um homem prolongado no tempo e no espaço.
Harriet Simpson marca um novo encontro com Quevedo. Mas este não chegará a acontecer porque entretanto ocorre o sismo de 9 de Julho de 1998 e Quevedo fica soterrado sob os escombros da sua velha casa, juntamente com o velho gato “Sócrates” que ali mesmo morre, naquele que constitui um dos momentos de maior sentimento e literariamente mais ricos do romance. Quevedo é retirado e transportado pelos bombeiros para o Hospital da Horta, onde acabará por falecer. Tinha 79 anos de idade.
Antes de expirar, Quevedo panteísta convicto, questiona os desígnios da natureza e revisita em “flash back”, o filme da sua vida – o que empresta a este romance potencialidades e possibilidades cinematográficas. O narrador traça um bem conseguido paralelismo entre os destroços do sismo e a lembrança dos destroços causados pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. À memória do moribundo Quevedo chegam-lhe ecos da canção “ Lilly Marlen” e, pela última vez, recorda Harriet, também ela sucumbida sob os escombros, numa longínqua madrugada de 1942…
O dragoeiro “Anaxágoras” que, durante séculos, desafiara o tempo e resistira de pé a tempestades e ciclones, acaba também por tombar sob os efeitos do sismo, sendo cortado aos bocados, para trabalhos de obstrução e resgate.
Sismo na Madrugada termina com uma descrição absolutamente notável, sobre o sismo de 9 de Julho de 1998, seus efeitos e nefastas consequências, mas também sobre todos os sismos da vida.
Harriet encontrará Quevedo já cadáver na Urgência do Hospital da Horta e, perante o espanto de João Maria e do Dr. Silva, (jovem médico de serviço naquela fatídica madrugada), diz ser neta do falecido, sem dar grandes explicações, limitando-se a um “It’s a long, a very long story”.
O romance tem um final em aberto, porque João Maria vem recordar que há um Diário que Quevedo escrevia…Esse Diário não é encontrado, mas estará nele a chave para se compreender a essência e o enigma de um homem que durante uma vida inteira, viveu dividido entre o amor à terra e a experiência do mundo.
Sismo na Madrugada é isso mesmo: uma sentida e sincera declaração de amor e de esperança às ilhas, ao mundo, às pessoas, à Natureza, e aos animais, sendo que estes, nos três livros de Humberto Moura, são”humanizados” e ganham foros de cidadania e de heroísmo, pois estão ali não para servir de décor, mas para desempenhar papéis de algum protagonismo.
Com uma eficaz e eficiente fluência narrativa, o romance está bem escrito e bem carpinteirado. Saúde-se a imaginação criadora de Humberto Moura.
E saúde-se este Sismo na Madrugada, que lançando olhares sobre o século XX, olha e humanidade e nos olha de frente – para nos falar do destino da vida humana no teatro do mundo.
Um livro que por isso mesmo, se lê com emoção e comoção.
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